Nos olhamos vários vezes a novela do Morro da Tartaruga, acima da Praia do Pinho. De novo, está havendo movimento na Justiça, no final de 2021. Mas vamos rever primeiro os capítulos anteriores. Há três grupos lutando pelo terreno:
- A família Araújo, que em 1983 permitiu que a AAPP - Associação dos Amigos da Praia do Pinho - ocupasse parte das suas terras durante cinco anos;
- A AAPP e seus sócios, que ocupam uns 22.260 m2 das terra do morro e quer continuar as ocupando;
- Sr. Marcelo Antônio de Queiroz Urban, que diz ter papeis dizendo que é dono de terras no Morro da Tartaruga, incluindo tudo ou parte das terras da família Araújo.
Antes de entrar nos argumentos de cada um, baseado nos informações incompletas que tenho, vale dizer que na Justiça a família Araújo venceu a AAPP: venceu os naturistas que construiram ou ocupam casas na área da AAPP; e venceu o sr. Marcelo Antônio, todas estes casos transitados em julgado, quer dizer, não permitindo apelação. Tanto a luta com a AAPP quanto a com sr. Marcelo Antônio foram até a STJ.
Os processos não são totalmente visíveis pelo internet, e as sentenças da Justiça, quando visíveis, não são sempre fáceis de compreender, as vezes num português barroco ou até rococó. O que mais clarificaria, uma mapa, se tiver não é visível.
Vários destes casos, até os mais simples, consumiram centenas de páginas. Sumarizar os casos, argumentos, e sentenças não é fácil. Pode ser que há erros ou falhas.
Para o pergunta maior, quando as decisões da Justiça vão ser postas em prática, e os naturistas postos na rua, não há como prever.
Os argumentos de cada um
O argumento da família Araújo é que as terras são deles faz muitos anos, ocupados pacificamente. Que cedeu em comodato um pedaço de terra por um tempo limitado à FBrN, que se recusou a sair.
O argumento da AAPP é que não é a FBrN, e que assumiu os privilégios da FBrN no Morro da Tartaruga, como usar o terreno, mas não as suas obrigações, como devolver o terreno no final dos cinco anos.
Os naturistas ocupando as cabanas construidos no lugar se dizem "terceiros", pessoas inocentes alheios a disputa, que durante muitos anos ocupam suas casas e adquiriram o direito de continuar lá.
Sr. Marcelo Antônio disse que tem papeis comprovando que ele é o dono de terras no Morro da Tartaruga. Não sei quais são as terras que Marcelo Antônio reclama, mas outros processos que o nomeiam como "confrontante" sugere que ele se diz dono, além das terras dos Araújo, de terras vizinhas.
Decisões da Justiça
Araújo x Marcelo Antônio
Bem que pode ser que sr. Marcelo Antônio tem registro em cartório de terras no Morro da Tartaruga. Porém, há comarcas em que há mais terras registrados em cartório do que existentes na comarca. Li que numa certa época havia lugares em Paraná onde as terras registras eram um múltiplo das reais. O problema não é novo e nem exclusivamente brasileiro: no "House of the Seven Gables" de Nathanial Hawthorne, publicado em 1851, inclua um título de vastas terras, escondido por dois séculos e quando redescoberto, sem valor, pois as terras já foram ocupadas e cultivadas por outros.
Ainda se eu tivesse um entendimento pleno da diferença entre domínio e posso, a explicação não caberia aqui. Deve haver livros sobre o assunto.
Um acórdão do STJ cita extensivamente a sentença da Justiça da Santa Catarina. Em soma, Sr. Marcelo Antônio disse que comprou as terras do espólio de um tal de Bibiano. Mas:
Ademais, lê-se na declaração dos herdeiros do Sr. Bibiano Manoel Venâncio, referida nos depoimentos pessoais e juntada à fl. 119 da ação de interdito proibitório apensa (autos n. 005.04.009455-8): "Que tem pleno conhecimento e por isso podem assegurar para todos os efeitos legais e de direito, que seu falecido pai, BIBIANO MANOEL VENÂNCIO, nunca possuiu terreno algum na localidade de Pinho ou Tartaruga município de Balneário Camboriú, neste Estado". Contudo, a assertiva - apesar de indicar eventual fraude no imóvel adquirido pelo réu - desserve à lide, que, repita-se, é possessória, devendo-se averiguar quem exerce o poder fático sobre a coisa, sem imiscuir-se no domínio.
Que houve fraude não quer dizer que Sr. Marcelo Antônio foi o autor, pode ter sido a vítima. Porém, no assunto de posse, perdeu em todas as instâncias para os Araújo. Mas poder ser que ele está reclamando terras além das que são dos Araújo.
AAPP x Marcelo Antônio
Incluímos em nossa tabela de ações anteriores, na coluna direta, os processos de usucapião da AAPP contra Marcelo Antônio. Nos anos que passaram desde que fiz a tabela, os sistemas do TJ-SC migraram para um sistema eletrônica e os processos digitalizados, e inutilizando os links na tabela. O link no sistema novo é 5000389-22.2012.8.24.0005.
Tem duas maneiras de interpretar isso. O benigno é "cinto e suspensórios": com os Araújo e Marcelo Antônio brigando sobre as terras,os sócios da AAPP estão processando ambos os partes, para assegurar seu direto contra qualquer um dos dois que seja vitorioso.
A interpretação menos benigno é que estão tentado tumultuar a situação, para atrasar uma resolução final que inevitavelmente vai resultar em seu despejo.
Um destes processos, 0006795-13.2013.8.24.0005, movido pelo "Alvaro Muinos Vazques e outro" me parece estranho. Pede a levantamento de todos os confrontantes (é palavra de advogado para "vizinho") e depois descreve o terreno, que tem quatro lados, e o vizinho em todos os lados é o sr. Marcelo Antônio. Estranho que seria preciso buscar confrontantes.
Olhando isso como um torneio, na partida dos Araújo x Marcelo Antônio, vencerem os Araújo. Dos Araújo x AAPP (que vamos ver embaixo), venceram os Araújo. O partido AAPP x Marcelo Antônio serviria para definir os outros lugares no pódio, segundo e terceiro, mas somente o primeiro ganha prêmio. Os outros ficam com contas de advogado.
Araújo x AAPP
Os Araújo emprestaram parte das suas terras em comodato (sem cobrar) por cinco aos à Federação Brasileira de Naturismo. Pediram de volta, a FBrN não saiu de lá.
Referente o argumento de que a AAPP não é a FBrN, e os sócios da AAPP não são a AAPP, o a TJ-SC concluiu, e a STJ citou:
No entanto, nesses autos, conclui-se pelo material cognitivo que não há como separar a FBN - Federação Brasileira de Naturismo da AAPP - Associação Amigos da Praia do Pinho, ora recorrida, já que tanto uma quanto a outra utilizam (assim como os associados da AAPP), sob a mesma condição de comodato, o imóvel dos autores, os quais postulam a retomada, diante do término da permissão de uso por eles concedida, sem devolução do bem.
Esta sentença é de 2014, ratificando acórdão anterior. A Código Civil mudou desde então, e a AAPP continua em cima do Morro da Tartaruga. O que é a clima na Justiça de Balneário Camboriu, que afinal vai ter que se mexer para mandar despejar os invasores e devolver as terras às Araujos?
Temos uma sentença de 13 de março de 2020, que já faz dois anos, nos embargos de Luiz Carlos dos Santos, da juíza Marisa Cardoso de Medeiros. Cito em parte, grifos azuis são meus:
Apesar de não ter restado evidenciado em que momento o embargante deu início ao exercício da posse alegada, é certo que não se instalou no local por motivo desvinculado da circunstância de frequentar a Associação, e de aproveitar a situação para lá se estabelecer de forma precária e irregular, tanto que não há notícia de que a casa ocupada pelo embargante disponha de projeto aprovado ou habite-se, ou mesmo que esteja pagando IPTU, estando a desfrutar comodamente do bônus da permanência gratuita na área, sem se submeter aos ônus daí decorrentes, próprios de quem, de fato, exerce a posse com animus de dono.
De outro giro, ao reconhecer na petição inicial que detinha conhecimento de que a propriedade do imóvel não lhe pertencia (seria de Marcelo Antônio de Queiroz Urban), o embargante demonstrou estar ciente dos riscos que estava assumindo ao se estabelecer em local que era de domínio alheio, o que confirma que lá se instalou precariamente e de má-fé, aproveitando-se da relação de confiança gerada pelos laços criados com a Associação.
Nessa conjuntura, considerando que o embargante adquiriu imóvel de quem não detinha a propriedade e, por conseguinte, não dispunha de poderes para efetuar a transferência do bem, a posse que daí decorre se afigura injusta e inapta a gerar qualquer direito, caracterizando clandestinidade.
A juíza entenda a situação. A decisão foi apelada, é claro, dando mais verões de praia para a AAPP.
Sim, mas quando?
Eventualmente, haverá despejo. Quando eu não sei, presuma-se que eventualmente a sentença da Justiça vale. Despejos, de fato, acontecem. Demoram, mais acontecem.