Ernest Hemingway definiu o lugar na literatura americano de
Huckleberry Finn quando disse, "Antes não havia. Depois não havia melhor."
A aventura do adolescente vadia Huckleberry Finn e do escravo fugido Jim acontece, fisicamente, numa balsa descendo o Rio Mississippi, maior do país, entre floresta nos margens e debaixo do céu. Livres, buscam escapar de um estado em que Jim é escravo, para um onde a escravatura é banida.
Muitos são os símbolos da liberdade do par no livro. Um é de ser livres de roupa. Na tradução de Monteiro Lobato, no capítulo XIX:
Eu preferia andar nu, sempre que os mosquitos deixavam, pois as roupas que me dera a família de Buck eram demasiado boas para serem cômodas; ademais, sempre gostei de andar à frescata.
Como qualquer grande obra de arte, Huckleberry Finn continua a provocar. Provoca mentes grandes para mostrar sua grandeza, e mentes pequenas a mostrar suas limitações.
A "palavra N"
O exemplo mais comum nas últimas décadas é o uso pelo Mark Twain de o que vou aqui chamar (para não provocar a censura automatizada de Blogger) "a palavra 'N'", que provoca em gringo a mesma histeria que "macaco" provoca em brasileiro.
O livro é profundamente anti-racista. Huck, num certo momento, veja a possibilidade de ganhar uma grana e cair nas graças da sociedade, entregando o escravo fugido Jim em troca de uma recompensa. Escreve uma carta apontando onde encontrar Jim e "pela primeira vez na minha vida senti-me limpo de pecados e vi que já poderia orar." Mas depois um longo debate interna, resolve: " 'Pois assim seja: irei para o inferno!' e rasguei o papel."
Mas há quem não consegue enxergar além da 'palavra N'".
E a nudez
Apesar do nudez de Huck e Jim estar explicito no texto (ainda que Lobato refere somente ao Huck, no original ambos são "quase sempre pelados"), nas edições ilustradas, inclusive publicadas sob o batuca do próprio Twain, eles parecem vestidos. A palavra tem mais liberdade do que a imagem.
O museu Whitney está abrindo um prédio novo no sul do Manhattan. Encomendou de Charles Ray uma escultura para a praça que fica ao lado de uma entrada ao High Line, um espécie de Minhocão que virou parque linear para pedestres. A proposta em tamanho maior que o real, três metros, é de Huck e Jim, na foto acima.
O Whitney andou para trás.
Uma matéria explica que o diretor e curador gostaram a escultura mas "... ficaram preocupados que a imagem de um negro pelado junto com um menino branco pelado, não importando a inocência ou histórico, ofenderia que passava, que poderia nem saber nem se importar com o contexto." Arriscado colocar genitália masculina onde poderia ser visto por quem estava de passagem, que não era "público de museu". Queriam colocar dentro do museu. Ray acho importante não somente que Huck e Jim estava sem roupa, mas que estava de céu aberto. Procurou outro lar para a escultura.
No meados do ano passado, a escultura preliminar - ainda não o final de aço pintado - estava no Art Instituto of Chicago até outubro do ano passado. Mas, de novo, dentro do museu, com o par com as costas para a janela, preservando quem esteja no lado de fora da visão de genitália.
Há uma excelente matéria sobre Charley Ray, e a dificuldade em encontrar um lar para a escultura, no New Yorker no ano passado.
Raça
Importante para entender a dificuldade de aceitar a escultura num lugar público, é o peso de raça no mente norte-americano (desde sempre) e o papel de sexo (faz umas décadas). É importante para americano que a escultura representa um adolescente branco e um adulto negro. Se os dois fossem da mesma raça, ou as raças invertidas, incomodaria menos. É difícil acreditar e impossível explicar, mas é verdade.
Há várias fotos da escultura online. A mais comum, que escolhi aqui, esconde a genitália de Huck (ainda sem pentelhos), mas mostra a de Jim, bem dotado por sinal, que talvez faz parte da dificuldade americano com a escultura. Procurei uma foto mais equilibrada, mas aí notei que nesta foto, não somente observamos Jim, mas estamos enfrentando o olhar dele. Não há maneira, a não ser de se agachar, que permite ver o cara de Huck.
Esculpidos em aço
Versões preliminares da escultura foram feitas em fibro de vidra. O final será em aço esculpido por máquina computorizada, técnica recente, diferente de fundição.
Esculturas fabricadas com a ajuda de maquinas e assistentes, usando técnicas que não são os tradicionais, são arte? Um dos destaques da autobiografia de Benvenuto Cellini é quando ele conta da fundição da sua Perseus com a Cabeça de Medusa. Houve uso amplo de assistentes, e quando o metal ameaçava coagular, Cellini jogou todos os pratos de estanho de casa dentro. A inovação na fabricação sempre foi parte do trabalho do artista. E Cellini também fez modelos preliminares.
Sexo
Das citações acima, e da própria trajetória da escultura, inegável que há controvérsia, e que isso foca no nudez; no nudez sendo masculino; e que se trata de homem negro com menino branco; e há quem implica com o tamanho do pinto de Jim. Nossos leitores presumo por ser naturistas encarem o nudez simples sem drama, e por estar lendo em português, estão livres do histórico racial do norte-americano.
Para muitos que visualizem a escultura, há um elemento sexual no par. As vezes isso vem do observador - um crítico escreveu do bairro do novo Whitney, e reclamou do novo-chique do bairro, lembrando em detalhe dos antigos redutos gay da região.
Procurar um elemento sexual na amizade entre Huck e Jim é uma coisa do momento, o momento sendo a consolidação de conquista de direitos pela comunidade gay. Cinquenta anos atrás apoiar tais direitos carregava riscos e exigia coragem; hoje não aderir é o que leva risco. Não há ortodoxia mas rígida do que a que ontem foi heresia. Enxerga-se a consciência gay onde nem existe, então. E aqui não existe.
Huck é ainda pre-adolescente. No Tom Sawyer ele e os amigos consideram um carreira como piratas, inclusive sequestrando mulheres, mas a atitude deles para com as mulheres falta qualquer elemento sexual. Twain termina aquele livro dizendo:
Assim termina este conto. Sendo estritamente a história de um menino, precisa terminar por aqui; a história não poderia ir muito além sem ficar a história de um homem. Quando a gente escreve um romance sobre gente grande, sabe exatamente onde parar - quer dizer, com um casamento; mas quando escreve de jovens, precisa parar onde melhor puder.
Para Huck ainda não chegaram as preocupações de amor. Do lado de Jim – e parte do que incomoda da escultura é que o lado de Jim importa sim, só com esforço enxergamos a cara do Huck – seu sonho é ficar livre, e trabalhar para poder comprar a liberdade da sua esposa e filhos, de quem foi vendido separadamente. A heterossexualidade de Jim é explícito.
Ray, que vive em nossa época não na de Twain ou do livro, antecipava que havia quem faria esta leitura, e perguntou no catálogo da exibição em Chicago, "O observador consegue navegar a política sexual?" Ele já teve outras esculturas banidos de lugares, ou tirados de lugares, porque alguém não gostava. E parece que, para ele, faz parte de fazer arte.
Se o arte mexe com os sentimentos de alguém, é porque é arte. Se alguém enxerga no arte seus próprios desejos, ou seus próprios temores, é porque é arte. Arte é para provocar, mesmo.
Obviamente, há quem prefere não ser provocado. Pelo arte, ou por argumentos ou dados que refutam as teorias que já adotou. Há nos EUA atualmente um respeito exagerado ao quem se sente ofendido, e o argumento de "pensar nas crianças" é usado para inibir qualquer manifestação de pensamento que não seja do mais comum, ou do mais fraco. Se o museu não pode hoje colocar na porta o que alguém poder interpretar mal, não confio que amanha poderia exibir no lado de dentro o que provoca.
Estrelas
Ray não disse que a significada da escultura esteja somente no mente do observador, posição que sempre achei babaca: se a obra não tem significada própria, o que preciso com barulho? O título já refere ao livro de Twain. Ainda, ele oferece que a postura dos dois reflete um parágrafo específico, que segue o parágrafo com que começamos o postagem, falando do nudez. O que o Huck da escultura tem na mão é ovos de rã:
Por vezes éramos únicos senhores do rio, durante grande parte da noite. Ao longe destacavam-se ilhotas e bancos de areia. Era freqüente lobrigarmos uma ou outra luz - lâmpada a arder por trás da janela de uma casinhola, ou lanterna de uma balsa ou lancha - ou escutarmos os acordes de um violino, ou as cantilenas provindas dessas embarcações. Como é delicioso viver em balsa, sob um céu tauxiado de estrelas! Deitávamo-nos de costas e punhamo-nos a debater se elas tinham sido feitas ou não. Jim era de parecer que as estrelas haviam sido feitas, e eu, que não. Imagine-se o tempo necessário para fazer tantas estrelas, uma por uma! Jim também achava possível que a lua tivesse "posto" as estrelas, o que era mais razoável, pois eu já vira uma rã pôr centenas de ovos. Também gostávamos de ver as estrelas caírem. Segundo Jim, eram estrelas goradas, que a lua jogava fora do ninho.
Umas das obras mais antigas do homem, como Stonehenge, foram feitos para entender as estrelas. A curiosidade é eterno, como é o desejo de liberdade — e como, infelizmente, o desejo de restringir a liberdade do próximo, e impor em todos os próprios mores e costumes. Huckeberry Finn faz parte do psique americano, e faria até durar o amor à liberdade. A preocupação como certas palavras é passageira, como a obsessão atual de enxergar tudo pelo ótica pedófila.
A política sexual de hoje teria sido incompreensível para o homem de ontem, e será visto como divertida pelo homem de amanha, que nem a elevação política de palavra sobre realidade. O livro de Twain aguentará a turbulência atual de censura, e descerá o rio de tempo até águas mais calmas. A Huck e Jim de Charles Ray também aguentará, e encontrará um lugar debaixo do céu, a frescata.